Quando estudar vira luxo: a infância empurrada para o trabalho
Dados do Equidade.info revelam que 14,7% dos estudantes brasileiros já reprovaram por causa do trabalho — um retrato brutal da relação entre desigualdade, evasão e infância perdida.
Escrito por Felipe Soares
10:00 - 16 de junho de 2025

Foto: Mauro Smith
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), qualquer forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima legal (geralmente 14 anos no Brasil), ou atividades perigosas realizadas por menores de 18 anos, caracteriza trabalho infantil. Os dados coletados pelo Equidade.info entre junho e agosto de 2024 revelam que essa violação é uma realidade cotidiana nas escolas brasileiras. Laura, por exemplo, é uma estudante do ensino fundamental 1 em Belo Horizonte que divide seu tempo entre vender cocadas feitas por sua mãe e frequentar a escola. Na última semana de provas, o cansaço acumulado pelo trabalho impediu que ela se preparasse adequadamente, e ela acabou reprovando em algumas disciplinas.
A história de Laura está longe de ser exceção — ela representa milhares de estudantes que, ao tentar equilibrar trabalho e educação, acabam não apenas ficando para trás nos estudos, mas também perdendo a infância antes da hora. Os dados analisados indicam que grande parte desses jovens está exposta a jornadas superiores a 40 horas semanais, ao uso de instrumentos perigosos e a ambientes inadequados, o que evidencia uma violação direta dos critérios definidos pela OIT.
No mês de maio, 84,3% dos estudantes afirmaram ter ajudado nas tarefas de casa — como lavar louça, varrer, cuidar de irmãos e outras atividades cotidianas. Esse número aumenta com o avanço escolar: 81,4% no Ensino Fundamental I, 89,2% no Fundamental II e 88,7% no Ensino Médio. Entre as meninas, a taxa chega a 88,5%, enquanto entre os meninos é de 81,1%. Isso revela que, à medida que os estudantes crescem e deixam a infância para trás, especialmente aqueles em contextos mais vulneráveis, são empurrados para responsabilidades cada vez mais pesadas, muitas vezes incompatíveis com sua idade. As meninas, de forma evidente, carregam ainda mais essa carga invisível.
Além das tarefas domésticas, 23,9% dos alunos afirmaram ter realizado alguma atividade remunerada em maio, ainda que por apenas uma hora na semana, gerando renda para si ou para seus responsáveis. A jornada semanal de trabalho é alarmante: 20,3% trabalham até 1 hora por semana; 46,2%, entre 1 e 13 horas; 11,8%, entre 14 e 42 horas; e 4,5% relataram trabalhar 43 horas ou mais. Esses jovens não estão apenas ajudando — estão sendo submetidos a rotinas exaustivas. Entre os que trabalham, 60,1% disseram que suas atividades envolviam produção para o consumo familiar, como plantar, colher, cozinhar ou cuidar de animais; 39,9% disseram que não.
Mas o que mais choca é a proporção de estudantes que lidam diretamente com instrumentos ou ambientes perigosos — violando diretamente as definições da OIT. Entre os alunos do Ensino Médio, 49,3% disseram já ter utilizado instrumentos de corte, como facão, foice, faca ou enxada. No Fundamental II, esse número é de 43%, e no Fundamental I, 34,4%. Quanto a máquinas ou objetos que podem machucar ou queimar — como fogão, forno, ferro de passar ou moenda — 44,8% dos alunos do Ensino Médio afirmaram já ter utilizado esses equipamentos, contra 38,2% no Fundamental II e 28,3% no Fundamental I.
Ainda mais grave é o contato com veículos automotivos. No Fundamental I, 16,7% afirmaram já ter usado carro, moto ou caminhão; no Fundamental II, 19,3%; e no Ensino Médio, 18,2%. Essas são tarefas que colocam vidas em risco.
Quando perguntados sobre experiências específicas de trabalho ao longo da vida, 23,8% dos alunos do Fundamental I disseram já ter trabalhado em plantações ou colheitas agrícolas. Esse número diminui para 17,8% no Fundamental II e 15,5% no Ensino Médio — indicando que muitos estudantes começam a trabalhar ainda crianças, sendo retirados precocemente do ambiente de proteção e aprendizagem.
Essa realidade denuncia um problema estrutural que compromete a aprendizagem, a saúde mental e o desenvolvimento integral desses jovens.
A percepção dos professores acompanha essa realidade de perto. Quase metade (47,3%) já deu aula para algum aluno que trabalha ou já trabalhou — sendo 3,7% no Fundamental I, 18,2% no Fundamental II e 30,6% no Ensino Médio. Ao estimar quantos alunos de uma turma de dez já trabalharam, 27,4% dos professores disseram entre um e três. Para 57% dos docentes, já houve ausência de alunos por conta do trabalho; 17,3% já presenciaram reprovações causadas diretamente por essa sobrecarga.
Esse dado se confirma entre os próprios estudantes: a taxa de reprovação por conta do trabalho é de 7,3% no Fundamental I, 18,9% no Fundamental II e 22,9% no Ensino Médio. Ou seja, o acúmulo de responsabilidades, as jornadas extensas e as condições perigosas empurram os estudantes para fora da escola antes mesmo que consigam concluir seus estudos com dignidade.
Do ponto de vista da gestão escolar, o cenário também é preocupante. Quando questionados se suas escolas oferecem recursos para apoiar alunos em situação de trabalho infantil — como tutoria, horários flexíveis, apoio psicológico, alimentação, transporte escolar e materiais gratuitos — 38,6% dos gestores (soma dos que discordam total ou parcialmente) afirmaram que esses recursos não estão disponíveis. Isso revela uma rede pública ainda distante de oferecer uma estrutura de acolhimento adequada.
Além disso, apenas 34,8% dos gestores disseram que a escola realiza treinamentos específicos para que professores e equipes saibam reconhecer sinais de trabalho infantil — como cansaço extremo, quedas no desempenho, faltas recorrentes ou até sinais de violência. Ou seja, mesmo diante de um problema que se escancara nos dados, faltam preparo e ferramentas para que a escola consiga agir com rapidez e proteção.
O trabalho infantil continua sendo uma das principais causas da evasão escolar no Brasil — e uma das mais cruéis. Laura, em algum momento, terá que escolher entre continuar ajudando sua mãe na venda das cocadas ou se dedicar inteiramente à escola. E infelizmente, como tantos outros jovens em um país moldado pela desigualdade, ela provavelmente escolherá o trabalho. Porque, para muitas famílias, sobreviver vem antes de estudar.
Lutar contra o trabalho infantil é lutar pelo direito de sonhar. É garantir que Laura e milhões de outras crianças não tenham que abrir mão da escola, da infância e do futuro.
*Atenção: A história, todos os nomes e personagens retratados nesta produção são fictícios. Nenhuma identificação com pessoas reais (vivas ou falecidas) é intencional ou deve ser inferida.
REFERÊNCIA
OIT – ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho infantil: o que é? Genebra: OIT, 2023. Disponível em: https://www.ilo.org/global/topics/child-labour/lang--pt/index.htm. Acesso em: 12 jun. 2025.